ABRAÇO


Ele avançou até mim. Seu rosto estava a poucos centímetros do meu, seus olhos vermelhos me fitavam incessantemente, senti como se tivesse passado meses enquanto ele alvejava minha alma com seu olhar. Meu coração batia cada vez mais rápido e eu me senti paralisada, nenhuma parte do meu corpo tinha força para se mexer, apenas cedi ali, como uma presa prestes a ser abatida. Minha respiração ofegante era o único som que preenchia o quarto, abafando suavemente o som das batidas rápidas do meu coração, que pareciam soar como tambores de guerra. Tentei desviar meus olhos de seu rosto pálido, mas algo me impedia, minha visão acabava sempre sendo atraída de volta para aquele rosto tão aterrorizante e ao mesmo tempo encantador.

Demorou alguns minutos até eu perceber aquela mão magra e fria subindo pelo meu tórax. Lenta e suavemente, como se deslizasse por cima de um lago congelado, tentando alcançar minha garganta. E alcançou. Ele apertou os seus dedos contra o meu pescoço, senti a firmeza e a frieza de seu toque e meu corpo imediatamente foi tomado por uma onda de arrepios. Eu só conseguia sentir medo. Seus olhos ainda encaravam incansavelmente os meus, que começavam a querer brotar lágrimas.

O terror que eu sentia agora estava sendo acompanhado por algum tipo de fascínio, já não sentia mais vontade de desviar o olhar, mas sim um desejo irrefreável de admirar aqueles incisivos olhos vermelhos, que pareciam brilhar na escuridão daquele quarto. Seus dedos apertavam meu pescoço com cada vez mais força, subitamente sua mão alternava de posição, acariciando minha pele. Senti suas unhas arranhando minha tez, numa alternância sutil de carícias. Percebi que sua outra mão também tentava alcançar minha face, dessa vez mais decididamente porém numa suavidade indescritível. Mais uma vez, senti sua pele fria tocando minha bochecha, com um movimento delicado com a mão, ele virou meu rosto levemente para o lado, afastando meu olhar do dele. Nada que eu via tinha foco ou significado, minha mente esqueceu o que significava visão.

Uma dor súbita me atingiu, cortando aquela sensação nebulosa que sentia até então. Senti seus dentes contra a pele do meu pescoço. Minha visão cessara totalmente. Revirei meus olhos e tentei gritar, mas nenhuma voz saiu de minha boca. A sensação quente do meu sangue dançando por minha pele era rapidamente extinguida pelos lábios daquele homem. Meu corpo estava paralisado, porém agora como se uma falta de vontade me tomasse, dando lugar apenas ao prazer. Eu caí nos braços daquele homem. Tentando inutilmente gritar, apenas gemidos ecoavam dos meus lábios, meus braços não tinham força para fazer absolutamente nada, os mesmos braços que brandem espadas e decapitam soldados. Mas isso já não importava mais. O prazer tomava todo o meu corpo, e eu me senti excitada, aterrorizada, confusa. Senti como se tivessem passado horas daquele misto de sensações, até que comecei a parar de sentir. Meus olhos pesavam muito, meu corpo estava dormente, eu já não sentia mais a mordida que tanto me excitava. A fraqueza tomava cada vez mais o meu corpo, minha audição sumia e minha pouca e fraca voz cessara. Meu corpo cedeu totalmente. A última coisa que me lembro é a sensação de queda.

Nada. O total vazio. A inconsciência e incompreensão. Minha mente não via mais sentido em nada. O que é mente? O que é o nada? Eu cessei de existir.

 

Algo quente jazia sobre meus lábios. Vejo milorde sentado em cima da cama. Vejo uma tempestade. A lua brilhando no céu ao longe. Flashes de visões separados por um breu da inexistência. Tudo acontecia ao mesmo tempo e durante décadas. Mais vislumbres. Sangue. Meu sangue? Não... O sangue de meu senhor, em minhas mãos, por entre meus dedos. Seu peito nu dilacerado em minha frente. Meus ouvidos zunem sem parar, uma mistura de sons indescritíveis ressoa por meus ouvidos. Escuridão novamente. Estou no chão. Jogada no chão, enxergo os pés de meu mestre, ele está sentado na beirada da enorme cama. Com muito esforço, levanto lentamente meus olhos, percorrendo o corpo de meu mestre, ele está inteiro novamente. Vejo seu rosto pálido. Sua expressão é de algo como pena, ou talvez indiferença. Só consigo sentir tristeza, sei agora que senti ódio, mas me faltava consciência pra discernir qualquer coisa. Minha barriga dói e minhas entranhas se contorcem, ainda estou deitada no chão. Não entendo o que está acontecendo, minha visão retorna aos poucos e os barulhos ensurdecedores vão se esvaindo lentamente. Consigo arranjar força para pelo menos me sentar no chão. Estou tremendo. Minha boca está seca, não... uma secura aflige todo o meu ser, estou com sede. Muita sede. Estou sedenta como se não tivesse me alimentado há anos. Alimentado...

Meus sentidos retornam quase que totalmente, mas me sinto zonza. Um cheiro forte subitamente atinge meu nariz. Tem mais alguém no quarto. E ela estava ali há bastante tempo, eu só não havia percebido, em meio a tanta desorientação. Era uma das serventes do castelo, eu já a havia visto antes. Ela está de pé, ao lado da porta, virada em minha direção. Ela não parece acordada, mas não parece totalmente adormecida. Seus olhos castanhos semi cerrados olham vagamente pra alguma direção através de mim. Nada mais importa agora. O cheiro que sinto dela é muito forte, um cheiro ferroso e adocicado me chama com muita força. Me levanto num desengatinhar desajeitado e súbito, quando percebo já estou na frente daquela moça. Ela era mais nova que eu, suas bochechas coradas eram muito visíveis em sua pele alva, os cabelos louro-escuros jaziam sobre seus ombros levemente caídos. Um breu novamente. A única coisa descritível durante essa escuridão em que eu me encontrava mergulhada, era a sensação de um liquido quente em meus lábios. E como era bom. Minha boca estava atracada à jugular da servente, eu bebi seu sangue que me saciava como nada havia saciado antes. O gosto ferroso passava por minha língua e descia pela minha garganta como em uma fonte.

Senti braços envolvendo meu corpo, e me puxando com força. Uma fúria súbita me tomou e mais uma vez, eu ataquei meu mestre. Gritei, me debati, golpeei com força aquele homem que me segurava. Ele me segurou por muito tempo, mais tempo do que eu posso contar. Passados alguns minutos de mais uma vez inconsciência, me vi deitada na cama. Meu senhor me abraçava por trás, carinhosa porém firmemente. A criada já não estava mais naquele quarto. Pela primeira vez naquela noite, eu finalmente senti calma.

Ainda deitada, dessa vez consciente e serena, parei pra analisar meus arredores. Eu ainda estava naquele mesmo quarto antes ajeitado (agora desarrumado e um tanto destruído), em uma leve penumbra, a luz da lua cheia adentrava a janela e iluminava o cômodo numa pálida luz azulada. Tem sangue na cama. Muito sangue no chão. Olho para minhas mãos, estão cheias de sangue. Desvencilho-me dos braços de meu senhor, vejo que ele me observa calmamente. Levanto da cama e vou até o espelho que ficava escorado na parede lateral. Um choque silencioso me aflige por um segundo. À minha frente jazia imóvel apenas um grande espelho. Vejo claramente a imagem refletida do quarto atrás de mim, mas quanto à minha imagem, nada que seja compreensível. Uma silhueta transparente, embaçada e distorcida imita meus movimentos. Não é mais possível distinguir um ser humano naquele reflexo. Olho, então, para baixo e observo meu corpo. A camisola branca – agora vermelha – colava umidamente sobre minha pele. Era desconfortável. Despi-me de minhas vestes e analisei novamente meu corpo, agora completamente nu. Minha pele estava mais pálida e fiquei espantada ao notar que todas minhas cicatrizes haviam sumido completamente. Meu corpo, outrora marcado por histórias de incontáveis batalhas, agora branco e vazio como uma folha de um livro ainda não escrito.

 

-Você agora é como eu, Espi – a voz de Veaces finalmente quebrou o silêncio infindável.

 

Me virei em direção ao meu senhor, ele agora estava sentado à beira da cama, me olhando pacientemente, esperando alguma resposta minha. Não respondi. Apenas o encarei por alguns segundos até ele começar novamente a falar.

 

-Eu te tomei daquele imbecil e te criei como minha guarda particular, percebi já na primeira vez que te vi que você possuía um potencial enorme, mas estava sendo desperdiçado servindo alguém como aquele cavaleiro fraco e inútil – Senti raiva naquele momento, Lorde Mikelis havia salvado minha vida há muitos anos, ele era um ótimo guerreiro e me ensinou a lutar dignamente, mas permaneci quieta. Milorde voltara a falar:

 

-Você é como eu... – repetiu novamente, de uma forma meio indagativa – sua força agora não terá limites, juntos, dominaremos qualquer reino e sobrepujaremos qualquer um que se opuser a nós! – esbravejou energicamente enquanto levantava. Lentamente começou a andar em minha direção: -Mas é claro, todo esse poder tem um preço... Você está fadada a viver eternamente na escuridão, a luz do dia é um pecado para nós, seu mínimo vislumbre ou presença é fatal para nossos corpos, não somos dignos de algo tão nobre e clemente como o calor aconchegante do sol... E também, – continuou, porém num tom mais animado – nosso ÚNICO alimento é o sangue humano. E nada mais. Bom, não veja isso negativamente, como pude ver, você adorou provar aquela criada – ele deu de ombros e esboçou um sorriso debochado. Ele caminhou em direção à porta e disse enquanto saía do quarto – Melhor descansar agora, você precisa se acostumar à sua nova vida e ainda tem muito o que aprender, nos vemos amanhã à noite.

            A porta fechou logo que ele saiu do cômodo, eu permaneci ali de pé, imóvel, nua, confusa, com muita raiva de tudo que eu ouvi. Eu quis gritar, quis tentar acordar deste sonho absurdo. Tudo aquilo não deveria ser real. A luz do quarto agora começara a tomar um tom levemente amarelado, caminhei ate a janela e vislumbrei pela última vez a alvorada que trazia o sol à minha presença. Fechei a janela, temerosa de ter um sequer vislumbre do que poderia me destruir, fui até a cama e me deitei, descansando, enfim.

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