ABRAÇO
O
terror que eu sentia agora estava sendo acompanhado por algum tipo de fascínio,
já não sentia mais vontade de desviar o olhar, mas sim um desejo irrefreável de
admirar aqueles incisivos olhos vermelhos, que pareciam brilhar na escuridão
daquele quarto. Seus dedos apertavam meu pescoço com cada vez mais força,
subitamente sua mão alternava de posição, acariciando minha pele. Senti suas
unhas arranhando minha tez, numa alternância sutil de carícias. Percebi que sua
outra mão também tentava alcançar minha face, dessa vez mais decididamente
porém numa suavidade indescritível. Mais uma vez, senti sua pele fria tocando
minha bochecha, com um movimento delicado com a mão, ele virou meu rosto
levemente para o lado, afastando meu olhar do dele. Nada que eu via tinha foco
ou significado, minha mente esqueceu o que significava visão.
Uma
dor súbita me atingiu, cortando aquela sensação nebulosa que sentia até então.
Senti seus dentes contra a pele do meu pescoço. Minha visão cessara totalmente.
Revirei meus olhos e tentei gritar, mas nenhuma voz saiu de minha boca. A
sensação quente do meu sangue dançando por minha pele era rapidamente
extinguida pelos lábios daquele homem. Meu corpo estava paralisado, porém agora
como se uma falta de vontade me tomasse, dando lugar apenas ao prazer. Eu caí
nos braços daquele homem. Tentando inutilmente gritar, apenas gemidos ecoavam
dos meus lábios, meus braços não tinham força para fazer absolutamente nada, os
mesmos braços que brandem espadas e decapitam soldados. Mas isso já não
importava mais. O prazer tomava todo o meu corpo, e eu me senti excitada, aterrorizada,
confusa. Senti como se tivessem passado horas daquele misto de sensações, até
que comecei a parar de sentir. Meus olhos pesavam muito, meu corpo estava
dormente, eu já não sentia mais a mordida que tanto me excitava. A fraqueza
tomava cada vez mais o meu corpo, minha audição sumia e minha pouca e fraca voz
cessara. Meu corpo cedeu totalmente. A última coisa que me lembro é a sensação
de queda.
Nada.
O total vazio. A inconsciência e incompreensão. Minha mente não via mais
sentido em nada. O que é mente? O que é o nada? Eu cessei de existir.
Algo
quente jazia sobre meus lábios. Vejo milorde sentado em cima da cama. Vejo uma
tempestade. A lua brilhando no céu ao longe. Flashes de visões separados por um
breu da inexistência. Tudo acontecia ao mesmo tempo e durante décadas. Mais
vislumbres. Sangue. Meu sangue? Não... O sangue de meu senhor, em minhas mãos,
por entre meus dedos. Seu peito nu dilacerado em minha frente. Meus ouvidos
zunem sem parar, uma mistura de sons indescritíveis ressoa por meus ouvidos.
Escuridão novamente. Estou no chão. Jogada no chão, enxergo os pés de meu
mestre, ele está sentado na beirada da enorme cama. Com muito esforço, levanto
lentamente meus olhos, percorrendo o corpo de meu mestre, ele está inteiro
novamente. Vejo seu rosto pálido. Sua expressão é de algo como pena, ou talvez
indiferença. Só consigo sentir tristeza, sei agora que senti ódio, mas me
faltava consciência pra discernir qualquer coisa. Minha barriga dói e minhas
entranhas se contorcem, ainda estou deitada no chão. Não entendo o que está
acontecendo, minha visão retorna aos poucos e os barulhos ensurdecedores vão se
esvaindo lentamente. Consigo arranjar força para pelo menos me sentar no chão. Estou
tremendo. Minha boca está seca, não... uma secura aflige todo o meu ser, estou
com sede. Muita sede. Estou sedenta como se não tivesse me alimentado há anos.
Alimentado...
Meus
sentidos retornam quase que totalmente, mas me sinto zonza. Um cheiro forte
subitamente atinge meu nariz. Tem mais alguém no quarto. E ela estava ali há
bastante tempo, eu só não havia percebido, em meio a tanta desorientação. Era
uma das serventes do castelo, eu já a havia visto antes. Ela está de pé, ao
lado da porta, virada em minha direção. Ela não parece acordada, mas não parece
totalmente adormecida. Seus olhos castanhos semi cerrados olham vagamente pra
alguma direção através de mim. Nada mais importa agora. O cheiro que sinto dela
é muito forte, um cheiro ferroso e adocicado me chama com muita força. Me
levanto num desengatinhar desajeitado e súbito, quando percebo já estou na
frente daquela moça. Ela era mais nova que eu, suas bochechas coradas eram
muito visíveis em sua pele alva, os cabelos louro-escuros jaziam sobre seus
ombros levemente caídos. Um breu novamente. A única coisa descritível durante
essa escuridão em que eu me encontrava mergulhada, era a sensação de um liquido
quente em meus lábios. E como era bom. Minha boca estava atracada à jugular da
servente, eu bebi seu sangue que me saciava como nada havia saciado antes. O
gosto ferroso passava por minha língua e descia pela minha garganta como em uma
fonte.
Senti
braços envolvendo meu corpo, e me puxando com força. Uma fúria súbita me tomou
e mais uma vez, eu ataquei meu mestre. Gritei, me debati, golpeei com força
aquele homem que me segurava. Ele me segurou por muito tempo, mais tempo do que
eu posso contar. Passados alguns minutos de mais uma vez inconsciência, me vi
deitada na cama. Meu senhor me abraçava por trás, carinhosa porém firmemente. A
criada já não estava mais naquele quarto. Pela primeira vez naquela noite, eu
finalmente senti calma.
Ainda
deitada, dessa vez consciente e serena, parei pra analisar meus arredores. Eu
ainda estava naquele mesmo quarto antes ajeitado (agora desarrumado e um tanto
destruído), em uma leve penumbra, a luz da lua cheia adentrava a janela e
iluminava o cômodo numa pálida luz azulada. Tem sangue na cama. Muito sangue no
chão. Olho para minhas mãos, estão cheias de sangue. Desvencilho-me dos braços
de meu senhor, vejo que ele me observa calmamente. Levanto da cama e vou até o
espelho que ficava escorado na parede lateral. Um choque silencioso me aflige
por um segundo. À minha frente jazia imóvel apenas um grande espelho. Vejo
claramente a imagem refletida do quarto atrás de mim, mas quanto à minha
imagem, nada que seja compreensível. Uma silhueta transparente, embaçada e
distorcida imita meus movimentos. Não é mais possível distinguir um ser humano
naquele reflexo. Olho, então, para baixo e observo meu corpo. A camisola branca
– agora vermelha – colava umidamente sobre minha pele. Era desconfortável.
Despi-me de minhas vestes e analisei novamente meu corpo, agora completamente
nu. Minha pele estava mais pálida e fiquei espantada ao notar que todas minhas
cicatrizes haviam sumido completamente. Meu corpo, outrora marcado por
histórias de incontáveis batalhas, agora branco e vazio como uma folha de um
livro ainda não escrito.
-Você agora é
como eu, Espi – a voz de Veaces finalmente quebrou o silêncio infindável.
Me
virei em direção ao meu senhor, ele agora estava sentado à beira da cama, me
olhando pacientemente, esperando alguma resposta minha. Não respondi. Apenas o
encarei por alguns segundos até ele começar novamente a falar.
-Eu te tomei
daquele imbecil e te criei como minha guarda particular, percebi já na primeira
vez que te vi que você possuía um potencial enorme, mas estava sendo
desperdiçado servindo alguém como aquele cavaleiro fraco e inútil – Senti raiva
naquele momento, Lorde Mikelis havia salvado minha vida há muitos anos, ele era
um ótimo guerreiro e me ensinou a lutar dignamente, mas permaneci quieta.
Milorde voltara a falar:
-Você é como
eu... – repetiu novamente, de uma forma meio indagativa – sua força agora não
terá limites, juntos, dominaremos qualquer reino e sobrepujaremos qualquer um
que se opuser a nós! – esbravejou energicamente enquanto levantava. Lentamente
começou a andar em minha direção: -Mas é claro, todo esse poder tem um preço...
Você está fadada a viver eternamente na escuridão, a luz do dia é um pecado
para nós, seu mínimo vislumbre ou presença é fatal para nossos corpos, não
somos dignos de algo tão nobre e clemente como o calor aconchegante do sol... E
também, – continuou, porém num tom mais animado – nosso ÚNICO alimento é o
sangue humano. E nada mais. Bom, não veja isso negativamente, como pude ver,
você adorou provar aquela criada – ele deu de ombros e esboçou um sorriso
debochado. Ele caminhou em direção à porta e disse enquanto saía do quarto –
Melhor descansar agora, você precisa se acostumar à sua nova vida e ainda tem
muito o que aprender, nos vemos amanhã à noite.
A porta fechou logo que ele saiu do
cômodo, eu permaneci ali de pé, imóvel, nua, confusa, com muita raiva de tudo
que eu ouvi. Eu quis gritar, quis tentar acordar deste sonho absurdo. Tudo aquilo
não deveria ser real. A luz do quarto agora começara a tomar um tom levemente
amarelado, caminhei ate a janela e vislumbrei pela última vez a alvorada que
trazia o sol à minha presença. Fechei a janela, temerosa de ter um sequer
vislumbre do que poderia me destruir, fui até a cama e me deitei, descansando,
enfim.
Comentários
Postar um comentário